terça-feira, dezembro 18, 2007

Com um pouco de água, um algodão e determinados movimentos retirava a maquiagem do rosto, pressionava a superfície felpuda na pele e escorregava a mão, o pó de arroz tão branco que enegrecia todo o resto, os pigmentos vermelhos e azuis...

Respeitável Público,
Vindo das mais distantes colinas do Norte, O Palhaço dos palhaços...

Palhaço...

Olhava no espelho: olhos, vidro e olhos, dois pares de olhos se flertando como irmãos tão distantes e tão costumeiros. A maquiagem que abandonava o rosto, deixava sulcos, ia embora o palhaço, feria-se o artista, arrancava uma parte do seu espírito e abria-se o caminho para outra maquiagem, outra máscara, a máscara mais abaixo da superfície, um pai, um caminhante, um homem, uma mulher, um faxineiro...

Durante a noite, nossa personagem piruetava num picadeiro, respirava, vestia-se, movia-se, falava tudo como um artista circense e na madrugada removia a maquiagem, transformava-se, transmutava-se frente ao espelho.

Mesmo sem a máscara da cor, ainda era uma personagem (ou devo dizer um humano?). Toda personagem surge de um momento, surge do pestanejar do humano, ela é a captação do movimento mais tímido, da expressão inexplorada, da possibilidade. E a humanidade é a dança das personagens, eternas guardiãs de máscaras, são os pais e o filho, o funcionário e o chefe, é o palhaço e a platéia. É Alice, e é Macabéia.

E ele olhava o espelho, olhos fitando olhos, pele imitando pele, duas cópias, duas vezes homem. E com o algodão pressionava o rosto, escorregava a mão, feria a própria face, desmanchava os acordos que se escreviam em forma de olhar, de suspiro, de respiração, puxava a tintura inacabada, removia a superfície colorida. No lugar uma fenda, duas fendas, janelas para o infinito e surpreendentemente, uma janela para o vazio.

sexta-feira, novembro 23, 2007

O som ecoou a pelo menos dois quarteirões, o povo curioso atiçou os olhos e os ouvidos, o corpo de bombeiro acionado, gritos abafados, lágrimas e pontos de interrogação se elevando acima dos sonhos. A multidão se adensou ao redor do chão tingido de vermelho, cada um queria levar para casa a morte, contrastar no olho a verdade de estar vivo... Algum tempo depois os jornais anunciavam: Suicídio! Um homem pulou da cobertura do prédio onde morava, “mas o mais curioso não é isso” a verdade é que o suicida manteve os olhos abertos enquanto caia, como se quisesse captar o mundo pela última vez, guardar para sempre a memória máxima da vida: a própria morte.

Naquele dia, naquele fatídico dia, o suicida acordou seis horas da manhã, coou seu café, tomou seu leite; limpou o rosto, abriu o guarda roupas, cheirou as próprias axilas e as besuntou de desodorante; Escolheu um terno, amarrou o cadarço, respirou fundo, abriu a porta, resgatou o maço de cigarros, fechou a porta, trancou-a; cumprimentou a primeira vizinha e o cachorro do apartamento ao lado, chamou o elevador, tomou a rua, caminhou resoluto até a esquina, virou, virou, andou... Cumprimentou quem devia cumprimentar e sentou-se no lugar onde me encontro, ele sabia de tudo que havia de acontecer, ele sentia e compreendia. Ele esperou por isso durante muito tempo, era o dia mais importante da sua vida, por isso nada poderia dar errado, era o dia mais planejado, esteve impregnado na sua pele desde que era um garotinho de calça azul.

O dia caminhou e arrastou os ponteiros do relógio com ele, papeis voaram de mesa em mesa de escritório, as nuvens andaram, caminharam, correram e desapareceram, o vermelho que antecede a noite gritou seu dom... E os pés fizeram seu trajeto, o elevador foi acionado, a cobertura foi compreendida e no ápice da sua vida o suicida sorriu, abriu os braços, piscou uma vez e saltou, saltou com os olhos abertos, olhos de águia que a tudo deve perceber...

Ela ajustou a lente, observou a torre, e no momento em que apertou o botão captou mais do que previa, um homem arqueado como pássaro, expressão de êxtase caindo do décimo quinto andar, de olhos abertos, arregalados para o mundo... Um suicida feliz!