quarta-feira, abril 23, 2008


Nunca entendi porque a alma é menos densa que a matéria. Ou porque o sonho não seria em si um poder.


Por trás de um olho o mundo se diluía e se reconstruía: colorir e nutrir, como se tudo fosse essas duas únicas palavras, como se somente esses movimentos pudessem existir.

Enquanto o céu crivava-se entre um projétil e outro, enquanto os gritos mortificavam os sobreviventes e o vermelho contrastava-se com o cinza da realidade, uma criança agachada, encolhida em um bueiro, lançava estrelas para um duende pegar: o serzinho sempre alcançava o mini-astro e o trazia de volta para o dono que, no seu pequeno lugar, vivia aventuras de capa e espada, magias e tenebrosas bruxas, fadas e dragões. Tudo colorido, tudo insistentemente colorido: verde, azul, vermelho e violeta! -Todas as cores que a realidade tentava matar, toda a liberdade e inocência que os grandes trancafiavam em concreto.

- Olhem para baixo, velhos senhores! Olhem, olhem! Vasculhem o chão inteiro, rosnem teu mantra fétido e tuas algazarras carcomidas! Tudo se renova, nada é preponderante, nada, nada! Do sonho nasce toda cor, nasce da fantasia mal-querida. Que da fuga nasça o caminho da volta! Uma passagem de cor explosiva, que possa aflorar sempre o amanhã... Olhem, olhem... Manuseiem tuas mentes enquanto é tempo, agucem as crianças que a muito adormeceram, agucem os olhos e os ouvidos...

Não haverá futuro sem cor, na caixa no meio do asfalto, nessa caixa louca de pandora, todos os monstros estão dormindo, todos menos um. O mais terrível de todos está à solta, cospe, urge, mula muda, teu grito com tom de canção, teu gesto com perfume de dança... Esperança - que dança além do véu tétrico da cinza-realidade. Ela traz uma amostra de todas as cores, monstro solto. Enquanto dentro da caixa, bueiro mágico, uma criança diverte-se com um duende. Enquanto por trás das pálpebras, no sono entrecortado, ousamos, mais uma vez OUSAR SONHAR.

domingo, abril 06, 2008




Durante um passeio ao mercado, Alma foi seqüestrada por sete índios de sete etnias diferentes e levada ao País do Encontro. No caminho, disseram que apenas um ser de cada identidade poderia viver naquele lugar e os caminhos que os levariam eram tantos, tão distintos e entrecruzados que só seriam medidos pela vã capacidade de imaginar o total.

Alma fora a escolhida, apenas ela poderia pôr os olhos naqueles campos, onde cada pessoa falava uma língua própria e fazia gestos incompreensíveis. Foi uma jornada longa e turbulenta, crivada de aquarelas de iluminuras. A moça cruzou pontes no céu e no inferno apenas para chegar, chegar onde todos estão e ninguém chega. Por estradas que só são percorridas no intervalo de um beijo, de um pequeno e singelo compartilhar. Andou primaveras e outonos, sonhou ao relento e quando finalmente chegou, se perdeu.

Enquanto a moça permanecia entre os estranhos, o tempo rangeu suas engrenagens, rodou as partículas do presente até produzir uma noite de tempestade. Cada trovão iluminava um rosto diferente, fazendo com que cada rosto, no medo, nas ruas de sentir, se reconhecessem tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão próximos; o País do Encontro se encontrou e caiu ao senso da terra. Sem que nada mais acontecesse, surgiu no meio do mapa, entre o leste e o oeste, apenas um ponto num emaranhado rabisco mundial.


Alma, que já vivia naquele país há muito tempo, saiu para visitar os países vizinhos, fazia muito tempo que não via ninguém que compartilhasse uma mesma identidade, e ao sair das fronteiras, assustou-se: não havia tais pessoas, tudo que encontrou foram enamorados, amarrados a beijos que se selavam e se dissolviam em eternas sucessões de ser tal como sempre foi, de ser um e muitos, de ser Alma.