domingo, dezembro 20, 2009

A Chaleira Solitária



A casa espera, ao som do relógio, um fantasma que se chegar sorverá o chá que deixara ferver.

segunda-feira, dezembro 07, 2009




Trêmulo, o primeiro homem esgueirou-se do útero até a superfície. Mal chegou e foi acolhido pelas estrelas que embalaram e acalentaram seu sono. Desde os primórdios, contaram-lhe histórias de pessoas como ele, mas que ainda não tinham nascido, estas viriam a ser do seu sangue, da sua glória se ele ousasse ser valente.



As constelações presentearam-no com as formas, a partir de seus brilhos, o sonho se formou e do sonho nasceu o mundo. No mundo o homem construiu seu reino. Em seus jardins e sacadas, Adão ouvia as histórias dos astros e acabava adormecendo nos braços do firmamento. Quando finalmente sentiu-se solitário, o céu comovido choveu. Da chuva surgiu um espelho d’água , onde, pela primeira vez contemplou seu rosto - viu as estrelas no chão. Viu uma estrela que não era estrela e viu seu próprio contorno tomar forma e tal como ele saíra do útero, do seu delírio saiu a primeira mulher. Conheceram-se de imediato. Diáfana na água o convidou a um passeio sob as nuvens e na dança dos seus corpos erigiram um mundo. Um mundo de estrelas mudas, onde toda a voz do firmamento se fazia carne e se renovava na solidão do homem que se esgueirava do útero, no encontro consigo mesmo, no silêncio das estrelas, na forma dos seus olhos, na forma da mulher.

quarta-feira, novembro 18, 2009



Prometeu, acorrentado no cume, só quer a brisa que acaricia sua queda.

quarta-feira, novembro 04, 2009


A Tempestade

As folhas saltam dos galhos e mergulham no vento. O mundo gira, tudo se movimenta. O cata-vento agita-se como um relógio dentro do peito. Cada partícula viaja rumo a não se sabe aonde, vem do canto donde nunca se veio.


O ar desenha na pele o caminho. Luzes titubeiam no firmamento ao ritmo do não retorno. Não importa o que se faz, o caminho continua: tudo se renova, tudo apodrece... Tudo transmuta... Não para, não para nunca!


O cata-vento sobre as árvores confunde-se numa dança mística.
Os homens saem a dançar, os corpos em água, os risos das mulheres, os gritos das crianças... Tudo cresce de novo, a vida continua nascendo, das fezes, sobre as fezes, nos rastros de sangue, nos corpos dos outros.


Ali perto, dentro de suas paredes, um velho numa poltrona observa a tempestade através do vidro. Sente suas dores cotidianas, olha pela mesma janela como sempre fizera. Bebe um gole do seu chá das cinco e desviando o rosto para dentro ri um riso cínico. Bem agasalhado e escondido da tempestade, ostenta calmo um pensamento petrificado nos lábios.

quarta-feira, outubro 21, 2009

Eulália

No seu sonho de menina, Eulália observou os primos chegarem à fazenda. Era dia de festa e teria companhia de crianças. Já sentia se aproximarem as brincadeiras nas árvores, as travessuras de mato, os joelhos ralados... Ansiosa mal conseguia esperar sua mãe acabar de vesti-la com seu vestido de festa, a mãe o fazia com esperança de limpeza impecável, ela só pensava em barro e rio. Se apertasse os ouvidos percebia os sapos coaxarem já chamando pelos meninos. Nessa altura os tios na mata já deviam ter encontrado a janta, os tachos de cobre na cozinha liberavam vapores adocicados, os velhos já carregavam as sanfonas e violas; no terreiro as comadres se cumprimentavam...

De sua jornada ao passado acordou radiante: suas pernas não doíam tanto quanto antes, podia até esticar seus ombros que, se eram curvados pela natureza, nesse momento pareciam mais eretos. Todas as rugas fugiram do espelho, seria até capaz de andar, seria... Olhou mais uma vez seu reflexo e riu, lembrou dos cheiros, do barro e acabou não se contendo. Com todo carinho confidenciou à enfermeira da tarde: Viver ainda vale a pena.

domingo, setembro 13, 2009


Aposta




Os dados giravam e o segundo antes de pararem escorria pela testa do jogador.


NÚMEROS ERRADOS.

Dalí a algumas horas estará morto, seu corpo apodrecerá com uma bala enterrada no crânio. Ele, que sempre fora uma pessoa que detestara insetos, terá que aprender a conviver com as moscas e zumbidos enquanto seus braços, inertes minerais no solo, não poderão fazer nada. Talvez alguém o encontre antes da putrefação. Esse alguém talvez faça a gentileza de incinerá-lo... Mas que gentileza seria essa? Sempre detestara lugares quentes. O melhor lugar de um acampamento era longe da fogueira. Se é para ir ao inferno, que este pelo menos seja frio.

Por todos os lados as pessoas o observavam. Uns engasgados, outros aliviados: Um AQUÁRIO. Era isso. A gentileza perfeita, jogar teu corpo num rio, numa cisterna, no mar. Fazê-lo afundar ao peso de rocha e lá no fundo ir se diluindo longe de moscas, longe de qualquer fonte mesquinha de calor.



O mar. Se houver compaixão... será seu último abrigo.

sábado, agosto 29, 2009


Deitado na grama, distraia-me com o movimento de nuvens. Fiapos brancos sob um infinito turquesa transformavam-se em coelhos, couves-flores, castelos e telefones – sonhos que davam forma um ao outro e voltavam a ser o que eram e o que nunca foram. Quando meus olhos escureceram, o circo não parou. Uma nuvem especialmente branca dançava como um coelho e num momento de distração saltou sobre minha cabeça. Travessa, agarrou meu cachecol e por mais que eu tenha corrido não consegui recuperá-lo. Passei por campos secos, lavouras e cafezais, desci em buracos, em cavernas e catedrais, mas não fui capaz. Perdi-a na claridade do sol, num pássaro que cruzou o céu. Seu rastro valia tanto quanto o pulo de uma pulga e até minha respiração o fazia sumir.

sexta-feira, julho 31, 2009



O cair das pálpebras coincidiu com o segundo no qual o sol adormecera. Quando seus olhos se abriram, não havia sobrado uma única gota laranja no céu. Logo logo seus pés estariam inchados, seus olhos menores, sua face mais flácida. Seu passado debruçou-se até aquele momento sobre a montanha, atrás dela um grupo de pessoas acendia uma fogueira, outro ria, um terceiro abria a garrafa. Cada uma daquelas pessoas desapareceria no futuro. Cada uma embarcaria em seu próprio vento enquanto sua própria brisa a carregaria.

Olhou para as pessoas. Uma a uma se casariam, dissolver-se-iam em seus próprios meios, partiriam ao surgir de novos conhecidos... Não iria se casar, não era do seu gênio. Não seria boazinha o bastante para ter um milhão de amigos, não choraria mil vezes por amor, desataria com o tempo os poucos laços que a envolvia.

Seus olhos voltaram a se fechar, uma piscadela durante a qual soou a partitura de toda sua vida. Não pôde mais pensar. Havia uma garrafa sendo aberta. Sua boca já estava seca.


segunda-feira, julho 06, 2009



Velha Senhora ao descobrir o mar.
Ou
Velha Mar

Os olhos repletos de lembranças perdem-se no encontro do azul com o branco. Aquela paisagem cantada finalmente era vivida. As mãos enrugadas tocam a espuma. Já fora uma vida inteira, tudo desaguando ali...



Nem era tão grandioso, mas podia morrer em paz








quinta-feira, fevereiro 12, 2009


BLOGS
ou
A Cidade dos espelhos

O primeiro habitante chegou distraído, entediado em seu quarto abriu os portões de letras e como num suspiro talhou palavra por palavra um bom dia, e isso foi tudo.

O segundo vinha de longe, tinha recém chegado à cidade e no instante em que pisara, lembrou dos portões que a muito tempo já tinha aberto e resolveu retomá-los.

Três, quatro, vinte pessoas também chegaram lá, cada um do seu modo, uns trazendo badulaques coloridos, balangandãs literários, penugens de letra nova ou arrogância de aborto, outros tal como conseguiam: só com a palavra do corpo. Ninguém sabia o que iria encontrar e muitos nunca encontraram nada.

Cada um construiu para si uma casa, umas barulhentas de músicas estranhas, outras simples, no estilo pré-fabricado, outras sofisticadas exibiam vitrais e afrescos. E assim começou. O primeiro trouxe a saudação, o segundo o caminhar, o terceiro não se esquecia das flores do parque, o outro das luzes dos carros... Sons, ouvidos, vozes, sussurros e gemidos começaram a reproduzir no virtual a calada de uma cidade, tantas vozes, tantos habitantes, diferentes lugares, diferentes olhos e maneiras se cruzavam e pavimentavam ruas e sonhos... Nunca diziam da mesma paisagem, três caminhantes de uma mesma rua viam lugares diferentes e se algum dia chegaram a concordar fora a respeito da chuva de verão. Ela caíra, tempestade horrenda, chuveirada de cristal, era o embalar de sonhos e o farolete dos pesadelos.

Outros habitantes foram chegando, refletiam para além dos portões os alicerces de uma cidade inteira, alicerces de sonho e imaginação, construíram no mundo uma cidade de espelhos, onde ao se olhar pavimentavam calçadas, comentavam, passavam.

Com o tempo as ruas foram até se abrindo e diferentes pessoas cruzaram seus asfaltos, habitaram postos diferentes, co-habitaram novas moradas, se amaram...

Por instantes um casal se derreteu, um beijo que não era para ele, um sussurro que não era para ela. Fora amor à primeira vista! Ninguém nunca saberia, voltariam a se ver por entre os portais e isso seria tudo. Ver-se-iam nos beijos que eram um para o outro sem nem saber que eram a necessidade de tal afeto... Sem nunca suspeitar que, naquele labirinto, dois espíritos reais tinham se cruzado e por não imaginarem, nunca se tocaram.

Baús esquecidos foram abertos, de dentro dele fotos e histórias foram retomadas, umas antigas, de gerações anteriores, traziam a antiguidade àquele espaço: criaram museus de lembranças e enrugaram os caminhos, outros trouxeram os tesouros que roubaram dos piratas, vinham de terras distantes, além mesmo da realidade, de terras além das pálpebras. Naqueles caminhos muitos se perderam, alguns se encontraram e nem dá para saber aonde. Não se sabe como foi, sabe-se mais ou menos que foi assim... E só.

Vários corpos num mesmo espaço compartilhando o mesmo planeta, almas em diferentes mundos, palavras num mesmo redemoinho, esperanças e necessidades naquela cidade, naquela metrópole de espelhos, flutuando no meio de todos, balançando no firmamento