quinta-feira, dezembro 04, 2008


A Escrava Elisabete


Os pais de Elisabete foram escravos, do tipo que viviam com os pés acorrentados e comiam papa feita de água suja. Mas isso fora há muito tempo. Elisabete cresceu já liberta de algemas e presa apenas por vozes que se punham sobre ela. Eram vozes e olhos de ferro, do tipo que controlam o movimento das pernas e a maneira como se deve portar. Ela era uma moça bonita, que trabalhava como doméstica na casa de uma senhora muito rica onde aprendeu o sentido da boa vida: mandar que as roupas do varau fossem recolhidas às sete e os vasos regados às oito...


De noite, ao dormir, sonhava com o tempo em que seria patroa, poderia comer papa de ovos de peixe, abandonar a água suja e sentir o cheiro do próprio corpo parecer com cheiro de flores.

Deus não é de todo malvado, de vez em quando até parece existir. Numa manhã, ensolarada numa típica manhã em que os contos de fadas para pobre acontecem, Elisabete estava lavando roupa no riacho quando Hilton passou por ela. Ele não podia acreditar no que vira: um misto de meiguice e beleza que o amarrou de tal maneira, que para sobreviver teve que arrebatar a jovem da água e a carregar para o altar da igreja, ou como preferem algumas versões para o altar dos lençóis.

Em pouco tempo Elisabete já tinha o corpo cheirando a flores e Hilton deixara crescer pelo corpo todos os fiapos que ela tanto amava. De um esposo fiel tornara-se uma adorável extensão felpuda na qual Elisabete pisava todas as noites com seus pés delicados e molestadores.

Hilton era um homem riquíssimo, dono do maior hotel daquelas bandas. E não demorou muito para que os pés de Elisabete o levassem a permanecer deitado a tal ponto que, para guiar os negócios, precisava rastejar pelo chão enquanto a ex-pobre montava em seu pescoço.

Elisabete tinha tudo de que precisava: cheiros, sedas e pérolas. Tinha empregados que levavam suas bagagens e tudo graças ao maravilhoso hotel de Hilton.

O hotel era a personificação de todo orgulho e vida de Elisabete e todos os dias ela ia para lá. No inicio, ela era a alma do lugar, seus pés massageavam tão bem o pescoço dos hóspedes, que todos se agachavam à sua passagem. Mas a idade foi se aproximando e as tetas que antes equilibravam o movimento dos pés foram se deslocando para o solo. Depois de um tempo Hilton morreu e a única companhia da mulher era os hospedes do hotel, mas estes não se curvavam mais.

Um dia surgiu uma reclamação, na manhã seguinte apareceu outra. Com o peso de olhos de ferro as reclamações afligiram a alma da Elisabete. A ex-pobre acatou uma, acatou outra, mas o tempo passou e o tempo fez que Elisabete não conseguisse mais se olhar no espelho. Este agora refletia os olhares de ferro que a ama de sua mãe ostentara. Fugindo do próprio espelho, ela corria para o hotel, olhava para cada hóspede e via em cada um deles a necessidade de ser libertada. Com o primeiro gritou que este acordava tarde, o que impedia o prosseguimento da limpeza do quarto às oito horas em ponto. Com o segundo reclamou que não olhara para as bromélias que os empregados regavam às 12 horas. Com o terceiro reclamara da roupa de cama embolada à noite.

O desenvolvimento do tempo, talvez até a paulatina queda das tetas, fez com que encontrasse mais problemas, cada dia surgia mais um motivo para ela agir, e a cada pessoa contra a qual gritava, ganhava um minuto em que era capaz de se observar em frente ao espelho. A necessidade era viva, ela precisava se ver, se mostrar com as pérolas maravilhosas de Hilton, ou com as sedas que faziam seu colo parecer de jovem mármore. A cada momento reafirmava a cor de sua pele gritando com um empregado. Mas pobre mulher rica, a queda das tetas atingiu um patamar em que, para propiciar uma hora no espelho, era preciso que vivesse uma vida completamente no topo da cadeia alimentar. Nem empregados, nem hóspedes, nem transeuntes, nem parentes. Cada um transfigurou-se em obstáculo e Elisabete insistia que a sua razão e os horários de sua rotina fossem impostos a todos. E com cada pessoa era uma guerra que enquanto lutava, lembrava de seu espelho e suas pérolas.


Com o tempo o hotel foi se esvaziando, cada hóspede enfurecido que ia, deixava boletos que aterrissavam sobre pérolas, as sedas acabaram por alçar vôo com a certeza de nunca mais voltar. Mas não importava: as jóias etéreas de Elisabete ainda a iluminavam em frente ao espelho.

Cada briga que não sedia era a certeza de continuar podendo se ver com tetas alvas. E cada momento em que as tetas permaneciam alvas era um momento de resplendor no qual só importava o interior do espelho. Tudo que se localizava de fora da moldura se fundia num redemoinho de deformidades. Pérolas que não existiam mais e sedas esfarrapadas compunham o único e verdadeiro mundo no qual ela poderia habitar. Era um mundo no qual os empregados corriam de um lado para o outro lavando umas roupas e tirando outras do varal (no horário certo, é claro) enquanto Elisabete lambia as jóias tão requintadas que ostentava.

Com o tempo o hotel rachou, seus alicerces ruíram e não havia mais nenhuma pérola que pudesse ser trocada pelo concreto de uma possível reconstrução, mas Elisabete não se importava mais. Sozinha e desnutrida em sua casa, alimentava-se de ovas de sonho, vislumbrava empregados-relógio correndo pela casa. E finalmente, no seu palácio, agora inteiro de espelhos, corria nua com sua pele branca, resplendecia a pérola à luz do luar. Ela era finalmente livre.

Ela era finalmente Patroa do seu mundo inteiro.


quinta-feira, setembro 18, 2008



Quando o mundo pediu a mais afiada das lâminas, dirigiu suas palavras a um ferreiro da Ilha, não era muito velho, tinha a idade de quem viveu o bastante mas ainda não envelhecera. Quando jovem pertencia à casta dos nobres, empunhou espadas e correu reinos inteiros em busca de aventuras e de dragões, tanta era sua vontade pelo inesperado e tão poucos os reinos da Terra, que ele cruzou os limites do tangível. Penetrou no crepúsculo do oeste e despertou nas ilhas prateadas. Ninguém sabe o que encontrou ali, talvez nem mesmo ele saiba, balbuciam sobre seres com asas, outros sobre os povos que desapareceram, alguns dizem que a própria animalidade andava sobre pernas, outros que eram apenas palavras - bibliotecas de um mundo subterrâneo, há muito escondido.

Respondendo ao pedido do mundo, o homem recolhera o metal mais precioso do fundo de uma caverna, esperou as estrelas e as luas se alinharem, buscou ervas, troncos secos, bigorna, sépalas e pedras. Guardou a própria língua nas chamas da fogueira ardente e começou suas marteladas. Primeiro esculpiu o molde, deveria ser feito de granito ou rubi, diziam que no desenho da lâmina já estavam contidos segredos longínquos. Pesou depois os metais, contou as quantidades de pedra e alimentou o fogo. Durante um ano a chama foi alimentada e seus vapores elevaram ao sublime pétalas de flores, folhas e sépalas de plantas selvagens. Quando todos os metais derreteram, todas as gemas tornaram-se lembranças e perderam-se no molde. Não houve uma forma imediata, seu molde era plano, o mais plano de todas as pedras. Era na verdade uma tábua lisa que continha o reflexo do céu e o brilho de metal fumegante.

O metal preencheu então a superfície, o próprio recipiente em que se encontrava fora mergulhado na água, preces foram ofertadas a todos os cantos do planeta até que o metal endureceu.

Era hora de bater. O ferreiro retirou da cintura os antigos martelos de família e segundo após segundo moldava a massa deformada sob seus olhos, foram 365 dias de trabalho, foram duas febres e muitos amores, cada segundo passava carregado de suspiros... E o metal começou a ganhar forma.

Primeiro as laterais, depois a ponta, mais tarde a superfície, linhas surgiram, o brilho intensificava-se. Muitos viram a jóia que o ferreiro construía e impressionados espalharam as notícias. O tempo trouxe com ele, nobres, generais, guerreiros e mercenários para competirem pela lâmina e quando o ferreiro percebeu, os olhares cobiçosos acabaram por danificar o gume da arma.

O forjador desesperado pela sua obra fugiu na calada da noite, agarrou suas coisas, seu tesouro e correu pela floresta. Só ele deveria saber aonde iria, e só havia um lugar para ir.

Um vulcão há muito adormecido, um rio de lava que endurecera e formara uma crosta contra toda erupção e desespero. O chão quente, as rochas febris exalavam tanto calor que era capaz de intensificar o trabalho de qualquer artesão de metais. Se no calor das pedras não pudesse terminar seu ofício, se naquele inferno não pudesse restituir o fio da lâmina, ninguém mais poderia, em lugar algum do mundo.

Lá, onde a febre do rosto é frescor ao verão, o artesão martelou, durante sete dias e sete noites. E forjou, a mais afiada das lâminas. Crivou o metal aqui e acolá e quando finalmente pôde vislumbrar sua obra ergueu o martelo, respirou feliz e como um raio voltou a descer a mão. A potência do último golpe atingiu a espinha da arma e ensurdeceu o mundo por um instante. No mesmo instante a lâmina se despedaçou. Estilhaços crisparam o ar. Os primeiros cegaram o ferreiro, o próximo perfurou seu coração. Os últimos romperam a barreira de terra. Penetraram no próprio inferno: abriam espaço para a lava voltar a subir e no caos vermelho se dissolveram.

A barreira, que durante séculos protegeu a região, rachou. O calor, o sabor tão guardado e tão hermeticamente isolado, jorrou no ar e num suspiro a luz e o fogo engoliram o corpo do homem, os restos da lâmina e a terra ao redor deles. O espaço inteiro se dissolveu no calor do vulcão, lava, sabor e fogo emergiram. O espaço e o ser desapareceram.
Doces salamandras brincaram naquela chama... Dissolveram e apareceram até não serem mais seres, mas as próprias línguas de chamas vermelhas dançando numa eternidade momentânea, sumindo e retornando...
Morrendo e Renascendo...



A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...
Mario Quintana

segunda-feira, agosto 25, 2008





O País das histórias

Como toda boa história, essa aconteceu há muito tempo: aconteceu quando o mundo estava nascendo. É uma história transmitida de geração a geração, desde a época do meu mais antigo avô, que a contou para seu filho... Meu pai a narrou para mim. Ouvi essas palavras também das antigas fiandeiras e dos comerciantes das feiras. É uma história simples que todos conhecem e nem sequer se dão conta.

Aconteceu quando todo o país era um pequeno reino num imenso deserto. Naquela época nem as torres de vidro nem as árvores antigas tinham brotado, a paisagem era amarela e as pessoas ainda não conheciam as tintas coloridas. Numa manhã como outra qualquer, as pessoas notaram o primeiro sinal de um boato que, fantasiado de epidemia, se espalhou de boca em boca. Desde os sábios até os pequenos artesãos, todos falavam de um grande homem. Um conquistador de terras, um guerreiro hábil que comandava todo um mar de homens e cavalos. Diziam que tinha feito pacto com o demônio, que em troca de serviços escusos, ganhou o dom de dominar e possuir reinos inteiros.

Todos no reino temiam que um dia esse conquistador aparecesse à beira das muralhas, que obrigasse cada cidadão daquele lugar à morte na batalha, à escravidão ou á desgraça moral. Cada novo boato que surgia, anunciava que ele estava mais próximo, que os seus cavalos vasculhavam o deserto ao nosso redor. Cada conversa de esquina reduzia-se a um presságio horrível de sua chegada. Não demorou muito e o burburinho atingiu o palácio. O rei desesperado procurou as três leitoras das estrelas em busca de conhecer o futuro e elas lhe disseram que aquele senhor se aproximava, que dali a três dias entraria na cidade.

Como era hábito naquela época, o grande conquistador entraria sozinho e disfarçado na cidade, vestiria suas roupas mais humildes e verificaria o merecimento daquele reino em sobreviver ou não. O rei ordenou que listassem todos os tesouros da cidade, que preparassem um banquete e quando, dali a três, um único homem, vestido de trapos, portando o bastão do peregrino cruzou as muralhas, mandou chamá-lo no palácio e com as palavras mais doces perguntou em que poderia ser útil a tão nobre senhor. Informou que possuía pedras preciosas e óleos perfumados, que possuía as mais belas fazendas de tecidos e que tudo seria do peregrino, se assim ele quisesse.

Contam que houve um momento de pausa na conversa, e quando o grande conquistador falou, disse que era muito gentil da parte do rei. “Meu nome é Orfeu e venho de muito longe, minha jornada é árdua e tudo que te peço é um pouco de água para lavar minha garganta do deserto que se impregna em mim”.

Erguendo a mão, o rei ordenou que trouxessem a água da mais afamada fonte da região e serviu o convidado em uma taça de ouro. Durante a noite ofereceu um banquete no qual uma ponta da mesa foi ocupada pela própria majestade e a outra pelo ilustre desconhecido. A cidade quase inteira compareceu ao evento. E em gratidão a toda a hospitalidade o forasteiro ofertou histórias. Segurando sua taça de ouro narrou uma por uma todas as histórias que hoje contamos aos nossos filhos, todas as histórias que te contamos quando era um pequeno bonequinho, todas... com exceção dessa história. Essa não é uma história do forasteiro, é uma história nossa. É a história do lugar onde morremos e crescemos. É o próprio contorno da nossa alma.

Quando a saciedade ocupou o lugar da fome e da sede, e alegria inebriou as feridas da areia, o velho Orfeu levantou agradecimentos a todos: ”A hospitalidade desse lugar me emociona, mas minha viagem não termina nessas terras. Meu caminho passa por além do deserto”. Após essas palavras partiu. Nem no dia seguinte, nem em nenhum outro houve qualquer exército ameaçando nossas muralhas.

Foi assim que nossa hospitalidade se tornou famosa: foi tratando um forasteiro como um príncipe que evitamos sermos dominados pelo exército assassino.

Depois que o homem foi embora, suas histórias foram contadas a todos que não estiveram no banquete. Eram aventuras tão fascinantes que cada um se incumbiu de mais tarde narrá-las aos que nasciam, e foram estas pessoas que nasceram depois quem as transmitiram aos que vieram ao mundo nos próximos anos... Assim se repetiu de geração a geração até que as histórias se impregnaram em todas as pessoas que por aqui passaram e de cada uma delas retiraram um novo tom, um novo cheiro e fumaça. Gostávamos tanto de contar essas histórias que, com o tempo passamos a nos chamar de O Povo de Orfeu e o lugar onde nascemos, onde hoje vivemos e onde hoje te conto essa história, foi batizado de O País das Histórias. É o nosso lar, o contorno de nossa alma, o alicerce de toda a imaginação e êxtase que uma narrativa pode proporcionar. Contamos essa história como quem olha o vento passar, contamos para que saiba como você mesmo é. E principalmente, como o velho Orfeu, contamos para aliviar as feridas que o deserto impregna em nós.


domingo, maio 18, 2008

Ainda guardo no peito o barroco das rendas, as tramas de afinidades e risos... O cheiro de corpo e flor, o aroma de canela permeando as curvas dos corpos.

Ela estava ali, uma criança risonha deitada nas almofadas sob a janela, olhava como quem quer brincar, a imagem perfeita daquilo que resistiu ao tempo e ainda conserva os antigos traços da primavera...

Está no meu peito, o triângulo sangrento de quem busca o aconchego na aventura, de quem já viu o mundo inteiro através de uma janela aberta. Tantos sóis são precisos para escavar um sentimento que nem o frio é capaz de destruir o fluido das fumaças de bolo.

Eu espiava o menino, parecia que permaneceria ali a eternidade, convidando sempre para pular no ar, viver o imaginário mais uma vez, a voz de quem sente mais o que é pequeno do que o que é quente, a vontade de viver o que é grandemente novo no lugar do que é eternamente fluido.

Guardo uma canção dos velhos que escutei na infância, guardo o calor de colcha de retalhos e de um café bem passado, sei que é um mundo diferente a cada dia, mas a cada voz que ouço, me apego ao meu antigo berço, à luz clara da minha terra, tão minha que permanece no mesmo lugar, na mesma canção do exílio que entôo como um inconsciente frente aos prazeres do caos.

Pobre garotinho, mal percebe o punhal que escondo, em instantes ele estará degolado, a cabeça sangrenta rolando pelas rendas da sala, enquanto devoro o coração... Tudo é energia, engulo tua carne com sangue para que viva para sempre, não como menino, mas como parte do meu corpo... Devoro-o com a velha fúria indígena, pelo vítreo dom da imortalidade, dilacero teu corpo para torná-lo eterno, para fazê-lo parte do mundo.

De longe ainda espio minhas janelas da infância, o pomar dos cheiros cítricos ou a manga suculenta do quintal vizinho, de longe vem o cheiro de canela, de tão longe, de tão longe que ainda me lembro que é uma alma, mais sólida que qualquer pedra, mais aconchegante que qualquer poltrona, mais eu que qualquer de meus atos.

Correrei como um assassino pelos becos escuros, sei que doerá a dor da partida, mas as gárgulas e arabescos esconderão meus passos, ainda assim, ainda posso, guardarei para sempre o pomar e os cacos do que fora, guardarei as velhas rendas barrocas, o velho cheiro de bolo e de café bem passado, fujo para tornar eterno, para tornar sólido, coerente na sua incoerência - Uma foto na parede, tão viva e tão sacra que fará chorar.

quarta-feira, abril 23, 2008


Nunca entendi porque a alma é menos densa que a matéria. Ou porque o sonho não seria em si um poder.


Por trás de um olho o mundo se diluía e se reconstruía: colorir e nutrir, como se tudo fosse essas duas únicas palavras, como se somente esses movimentos pudessem existir.

Enquanto o céu crivava-se entre um projétil e outro, enquanto os gritos mortificavam os sobreviventes e o vermelho contrastava-se com o cinza da realidade, uma criança agachada, encolhida em um bueiro, lançava estrelas para um duende pegar: o serzinho sempre alcançava o mini-astro e o trazia de volta para o dono que, no seu pequeno lugar, vivia aventuras de capa e espada, magias e tenebrosas bruxas, fadas e dragões. Tudo colorido, tudo insistentemente colorido: verde, azul, vermelho e violeta! -Todas as cores que a realidade tentava matar, toda a liberdade e inocência que os grandes trancafiavam em concreto.

- Olhem para baixo, velhos senhores! Olhem, olhem! Vasculhem o chão inteiro, rosnem teu mantra fétido e tuas algazarras carcomidas! Tudo se renova, nada é preponderante, nada, nada! Do sonho nasce toda cor, nasce da fantasia mal-querida. Que da fuga nasça o caminho da volta! Uma passagem de cor explosiva, que possa aflorar sempre o amanhã... Olhem, olhem... Manuseiem tuas mentes enquanto é tempo, agucem as crianças que a muito adormeceram, agucem os olhos e os ouvidos...

Não haverá futuro sem cor, na caixa no meio do asfalto, nessa caixa louca de pandora, todos os monstros estão dormindo, todos menos um. O mais terrível de todos está à solta, cospe, urge, mula muda, teu grito com tom de canção, teu gesto com perfume de dança... Esperança - que dança além do véu tétrico da cinza-realidade. Ela traz uma amostra de todas as cores, monstro solto. Enquanto dentro da caixa, bueiro mágico, uma criança diverte-se com um duende. Enquanto por trás das pálpebras, no sono entrecortado, ousamos, mais uma vez OUSAR SONHAR.

domingo, abril 06, 2008




Durante um passeio ao mercado, Alma foi seqüestrada por sete índios de sete etnias diferentes e levada ao País do Encontro. No caminho, disseram que apenas um ser de cada identidade poderia viver naquele lugar e os caminhos que os levariam eram tantos, tão distintos e entrecruzados que só seriam medidos pela vã capacidade de imaginar o total.

Alma fora a escolhida, apenas ela poderia pôr os olhos naqueles campos, onde cada pessoa falava uma língua própria e fazia gestos incompreensíveis. Foi uma jornada longa e turbulenta, crivada de aquarelas de iluminuras. A moça cruzou pontes no céu e no inferno apenas para chegar, chegar onde todos estão e ninguém chega. Por estradas que só são percorridas no intervalo de um beijo, de um pequeno e singelo compartilhar. Andou primaveras e outonos, sonhou ao relento e quando finalmente chegou, se perdeu.

Enquanto a moça permanecia entre os estranhos, o tempo rangeu suas engrenagens, rodou as partículas do presente até produzir uma noite de tempestade. Cada trovão iluminava um rosto diferente, fazendo com que cada rosto, no medo, nas ruas de sentir, se reconhecessem tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão próximos; o País do Encontro se encontrou e caiu ao senso da terra. Sem que nada mais acontecesse, surgiu no meio do mapa, entre o leste e o oeste, apenas um ponto num emaranhado rabisco mundial.


Alma, que já vivia naquele país há muito tempo, saiu para visitar os países vizinhos, fazia muito tempo que não via ninguém que compartilhasse uma mesma identidade, e ao sair das fronteiras, assustou-se: não havia tais pessoas, tudo que encontrou foram enamorados, amarrados a beijos que se selavam e se dissolviam em eternas sucessões de ser tal como sempre foi, de ser um e muitos, de ser Alma.




sábado, fevereiro 16, 2008

Houve um tempo em que todos os homens e mulheres eram diferentes, cada um carregava a sagrada singularidade que o fazia mais que um ponto de uma constelação.

Essas diferenças faziam dos humanos a humanidade, cada rosto vangloriava-se com o exótico, com o único e singular que havia no outro. A diferença era tão brilhante que unia todos como uma imensa colcha de retalhos onde a linha mesclava-se a cores e sensações.

Do mais árido deserto eis que então surgiu rastejante o espectro da serpente, enrolando-se e engolindo o próprio corpo mostrou que havia o igual, a unidade e a uniformidade. O homem viu a igualdade e essa envenenou o mundo, de dois em dois, três em três os homens deram as mãos, mascararam-se, perderam o brilho que antes os fascinava. O diferente foi assassinado... E ninguém foi punido.
A voz do mundo minguou pouco a pouco, ergueram-se barreiras entre os seres, feitas da mesma substância que antes os unia, que antes costurava as colchas de retalho. Ergueram-se estandartes de cores variadas, todos invisíveis, içados em lanças afiadas, mais altos que qualquer pensamento.

...e os homens não perceberam o que acontecia...

Esse mundo tinha, há muito tempo, enviado um homem ao Cosmos, um astronauta que foi caçar estrelas. Quando voltou, ele não acreditou que estava no mesmo mundo que deixou. Estava tudo... Igual. Mandaram que sua voz silenciasse! ORDENARAM QUE ELE NÃO FOSSE ÚNICO, que vendesse A ALMA, que mutilasse seu corpo, que estraçalhasse seu demônio e ele, desesperado, se afastou dos homens.

Procurou a caverna mais distante, mais sombria e com as mãos tampando os ouvidos, com os joelhos entre os cotovelos adormeceu. Teve pesadelos sombrios, frios, úmidos enquanto no mundo lá fora as pessoas o julgavam, se debatiam para saber qual cor ele tinha, qual era o ódio que o afastava, qual era o veneno que ele destilava.

Apenas uma menina o procurou, talvez por não ser propriamente desse mundo, ela era um ser misto, misto de espírito e gente, carregava as asas da leveza mas estava trancafiada em carne. Ela o encontrou e perguntou mais do que afirmou: teceu uma resposta!

Porém ela, pobre ela, era mais carne que leveza e logo desacreditou das palavras que ouvira, esqueceu-as e quando voltou para o mundo vestiu-se de uma única cor, colou-se abaixo de um estandarte.

O tempo foi apagando a memória do povo, não mais debatiam os motivos do astronauta, não mais lembravam-se dele, e ele não tinha povo. Nessa história perdera os irmãos e quando finalmente saiu da caverna, estava só.

Tão só quanto qualquer um que não se encaixava em cores, que não vivia sob um estandarte.
Tão só quanto era possível.

O impossível era mais além, tão além que as serpentes que envenenaram o diferente nunca encontraram e nunca ninguém encontraria, estaria por toda eternidade guardado por querubins e espadas flamejantes, longe de todo olho humano, longe de toda semelhança.