quinta-feira, setembro 18, 2008



Quando o mundo pediu a mais afiada das lâminas, dirigiu suas palavras a um ferreiro da Ilha, não era muito velho, tinha a idade de quem viveu o bastante mas ainda não envelhecera. Quando jovem pertencia à casta dos nobres, empunhou espadas e correu reinos inteiros em busca de aventuras e de dragões, tanta era sua vontade pelo inesperado e tão poucos os reinos da Terra, que ele cruzou os limites do tangível. Penetrou no crepúsculo do oeste e despertou nas ilhas prateadas. Ninguém sabe o que encontrou ali, talvez nem mesmo ele saiba, balbuciam sobre seres com asas, outros sobre os povos que desapareceram, alguns dizem que a própria animalidade andava sobre pernas, outros que eram apenas palavras - bibliotecas de um mundo subterrâneo, há muito escondido.

Respondendo ao pedido do mundo, o homem recolhera o metal mais precioso do fundo de uma caverna, esperou as estrelas e as luas se alinharem, buscou ervas, troncos secos, bigorna, sépalas e pedras. Guardou a própria língua nas chamas da fogueira ardente e começou suas marteladas. Primeiro esculpiu o molde, deveria ser feito de granito ou rubi, diziam que no desenho da lâmina já estavam contidos segredos longínquos. Pesou depois os metais, contou as quantidades de pedra e alimentou o fogo. Durante um ano a chama foi alimentada e seus vapores elevaram ao sublime pétalas de flores, folhas e sépalas de plantas selvagens. Quando todos os metais derreteram, todas as gemas tornaram-se lembranças e perderam-se no molde. Não houve uma forma imediata, seu molde era plano, o mais plano de todas as pedras. Era na verdade uma tábua lisa que continha o reflexo do céu e o brilho de metal fumegante.

O metal preencheu então a superfície, o próprio recipiente em que se encontrava fora mergulhado na água, preces foram ofertadas a todos os cantos do planeta até que o metal endureceu.

Era hora de bater. O ferreiro retirou da cintura os antigos martelos de família e segundo após segundo moldava a massa deformada sob seus olhos, foram 365 dias de trabalho, foram duas febres e muitos amores, cada segundo passava carregado de suspiros... E o metal começou a ganhar forma.

Primeiro as laterais, depois a ponta, mais tarde a superfície, linhas surgiram, o brilho intensificava-se. Muitos viram a jóia que o ferreiro construía e impressionados espalharam as notícias. O tempo trouxe com ele, nobres, generais, guerreiros e mercenários para competirem pela lâmina e quando o ferreiro percebeu, os olhares cobiçosos acabaram por danificar o gume da arma.

O forjador desesperado pela sua obra fugiu na calada da noite, agarrou suas coisas, seu tesouro e correu pela floresta. Só ele deveria saber aonde iria, e só havia um lugar para ir.

Um vulcão há muito adormecido, um rio de lava que endurecera e formara uma crosta contra toda erupção e desespero. O chão quente, as rochas febris exalavam tanto calor que era capaz de intensificar o trabalho de qualquer artesão de metais. Se no calor das pedras não pudesse terminar seu ofício, se naquele inferno não pudesse restituir o fio da lâmina, ninguém mais poderia, em lugar algum do mundo.

Lá, onde a febre do rosto é frescor ao verão, o artesão martelou, durante sete dias e sete noites. E forjou, a mais afiada das lâminas. Crivou o metal aqui e acolá e quando finalmente pôde vislumbrar sua obra ergueu o martelo, respirou feliz e como um raio voltou a descer a mão. A potência do último golpe atingiu a espinha da arma e ensurdeceu o mundo por um instante. No mesmo instante a lâmina se despedaçou. Estilhaços crisparam o ar. Os primeiros cegaram o ferreiro, o próximo perfurou seu coração. Os últimos romperam a barreira de terra. Penetraram no próprio inferno: abriam espaço para a lava voltar a subir e no caos vermelho se dissolveram.

A barreira, que durante séculos protegeu a região, rachou. O calor, o sabor tão guardado e tão hermeticamente isolado, jorrou no ar e num suspiro a luz e o fogo engoliram o corpo do homem, os restos da lâmina e a terra ao redor deles. O espaço inteiro se dissolveu no calor do vulcão, lava, sabor e fogo emergiram. O espaço e o ser desapareceram.
Doces salamandras brincaram naquela chama... Dissolveram e apareceram até não serem mais seres, mas as próprias línguas de chamas vermelhas dançando numa eternidade momentânea, sumindo e retornando...
Morrendo e Renascendo...



A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...
Mario Quintana

5 comentários:

Tiago Tonelli disse...

=)
Sim, escrevo porque vivo...
E escrevemos vida e morte, dança e contemplação. Dança! Das chamas, da chuva, das folhas e sementes livres... Lembrou-me um texto que deixei dentro de algum livro (são vários nessa situação).

Marilen disse...

Marcossss
Amei o texot!
Vc deveria escrever mais!!!
beijoss

Sydnei Melo disse...

cara... eu me senti no meio de um jogo de RPG =D

Muito empolgante seu texto, gostei muito.

Um abraço.

Denise Lícia disse...

muuuuuito bom!!!!!

Ingrid disse...

Marcos, enquanto lia me perguntava onde encontra tanta criatividade e talento. Fico feliz por ter vindo lê-lo.
E quanto a Lisboa, estou morando aqui há pouco mais de 3 meses, fazendo mestrado.